sábado, 3 de maio de 2014

Análise técnica: coisas que Geraldo Vandré ensinou a Chico Buarque

Rivais nos festivais e amigos na ideologia: análise poética das canções com o contexto da época e da relação entre Vandré e Chico.

Análise muito interessante da canção de Vandré e sua relação com Chico Buarque no site MPBsapiens no link...http://mpbsapiens.com/pranao-vandre/

Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores (Geraldo Vandré) – Análise Poética.

Várias pessoas já estranharam o fato de, nas citações que fiz sobre essa música, só tê-la abordado pelas mensagens explícitas do texto associadas à época em que foi criada e cantada. 
Acontece que não fiz isso antes porque o próprio Vandré cantou-a de formas diferentes ao longo dos anos. Não estou nem considerando aquela coisa feia da Simone, cantando a música sentada numa Mercedes Sport conversível no clip de lançamento, feito num programa dominical noturno de uma emissora de televisão brasileira de grande audiência.
- Então invadirei a casa adormecida. 
Outro tanto de pessoas me pergunta até hoje por que, no festival de MPB da Record, ocorrido em 1966, o Chico Buarque cantava a música A Banda sempre após a a Nara Leão já tê-la cantado? Dois eram os motivos:
1- Nara não sabia cantar a música obedecendo a configuração poética.  2- Ao cantá-la pela segunda vez, e do jeito correto, a música era cantada duas vezes seguidas e a plateia decorava melhor a letra. 
O primeiro motivo é o grande responsável pelo fato de tanto Chico quanto Vandré evitarem entregar as suas músicas para qualquer cantor cantá-las, preferindo eles mesmos as defenderem nos festivais de MPB. 
Embora, em 1966, os dois tenham colocado as suas músicas nas vozes de Nara Leão e Jair Rodrigues, este cantando a música Disparada, do Vandré, nenhum deles, mesmo insatisfeitos com as perdas das estruturas poéticas das letras, pode se queixar, já que ambos ganharam aquele festival. 
Além de bons poetas, Chico e Vandré eram amigos o bastante a darem palpites um na letra do outro, e nesse festival de 1966 o Chico certamente percebeu um truque poético do Vandré neste pensamento de Disparada:

Pre/pa/re-o/ seu/ co/ra/ção – 7 sílabas
Pras/ coi/sas/ que-eu/ vou/ con/tar – 7 sílabas
Eu/ ve/nho/ lá/ do/ ser/tão – 7 sílabas
E/ pos/so/ não/ lhe-a/gra/dar – 7 sílabas
A/pren/di/ a/ di/zer/ não – 7 sílabas
Ver/ a/ mor/te/ sem/ cho/rar – 7 sílabas
E-a/ mor/te-o/ des/ti/no/ tu/do – 7 sílabas
Es/ta/va/ fo/ra/ de/ lu/gar – 8 sílabas
E-eu/ vi/vo/ pra/ com/ser/tar – 7 sílabas

Isso que fiz com os versos recebe o nome de Escansão, que consiste em separar as Sílabas Poéticas dos versos para facilitar o visual nas contagens da Métrica. 
A Sílaba Poética pode ou não ser igual à gramatical, cabendo ao poeta decidir no instante da criação do poema. Normalmente, a Sílaba Poética costuma apresentar os sons naturais da nossa fala cotidiana, juntando num só tempo os sons de duas sílabas gramaticais de termos diferentes quando há um ditongo, como ocorreu nos versos 1, 2, 4, 7 e 9; nas vezes em que usei o hífen e mantive as sílabas gramaticais ligadas por ele. 
Como a contagem métrica de um verso, por regra, encerra na sua última sílaba tônica, isso explica eu ter colocado 7 sílabas também no sétimo verso, cuja contagem total apresenta 8 sílabas, já que finda em palavra paroxítona. 
Dá pra reparar o que aconteceu no oitavo verso, após todos os 7 anteriores apresentarem 7 sílabas? 
Temos dois tipos de Versificação: Regular, que apresenta todos os versos com idênticas contagens métricas, e Irregular, que apresenta versos com diferentes medidas. Sabendo-se que todos os versos restantes da letra de Disparada apresentaram 7 sílabas poéticas, dá para atestar que o Vandré tentou fazer a letra inteira em Verso Regular. 
Ora, então a composição apresenta um Verso Manco, que é aquele diferente dos demais em metro ou ritmo? 
Sim, Vandré mancou aquele verso, mas prestem atenção nos textos desse verso, do anterior e do posterior e comparem as medidas. O anterior cita as coisas, o oitavo manca dizendo que elas estavam fora de lugar, e o nono diz pra que veio: Consertar! 
Oitavo verso com 8 sílabas, dentre os demais com 7, é um fino truque de poeta na versificação para reforçar a filosofia do texto do verso, mesmo que para isso tenha que manchar o poema com um Verso Manco. 
No festival do ano seguinte Chico concorreu com a música Roda Viva. Dessa vez não ganhou, mas a letra da música apresentou a seguinte curiosidade na primeira estrofe:

Tem/ di/as/ que-a/ gen/te/ se/ sen/te – 8 sílabas
Co/mo/ quem/ par/tiu/ ou/ mor/reu – 8 sílabas
A/ gen/te-es/tan/cou/ de/ re/pen/te – 8 sílabas
Ou/ foi/ o/ mun/do-em/tão/ que/ cresceu? – 9 sílabas

Novamente tivemos o surgimento de um Verso Manco numa estrofe, mas parece que tinha o endereço certo de um amigo para outro: 
- Viu como o meu mundo CRESCEU em uma sílaba, amigo? 
Em 1968 tivemos nova troca de recados entre eles. Chico escreveu uma peça, também chamada Roda Viva, que termina com os atores oferecendo ao público Flores, Flores e mais Flores, e no mesmo ano o amigo Vandré entra em outro festival com a música Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores, que bem diferente de Disparada, sugere não ter sido feita em Versificação Regular, que dá à aparência do texto uma agradável Estética Simétrica.
Talvez, para poder atingir melhor a compreensão do texto pela massa popular, Vandré desta vez usou rimas de baixa qualidade, como as com os Vulgares sons ÃO, alguns gerúndios muito usados, e os infinitivos ER. Coisa bem Pobre mesmo.
Constatei interessantes estratégias com Verso Branco (verso sem rima com os demais da estrofe), que suponho ter sido uma brincadeira dele na construção do texto.
Basta reparar, já na primeira estrofe, que tivemos quatro versos nos sons parentes ÃO-ÕES, e um AIS solitário e perdido no meio deles, justamente no verso cujo texto sugere que sejamos IGUAIS. Acontece o mesmo com a FLOR na terceira estrofe, toda cercada por ÃO e ÕES e nenhum outro OR.
Na quinta estrofe temos dois Brancos, que embora tenham a mesma vogal tônica,I, fica muito difícil aceitar PERDIDOS rimando com ENSINAM, como que sugerindo um PERDIDO fazendo companhia para um que  ENSINA sozinho. Isso volta a acontecer com outros dois versos na sétima estrofe, com solitárias RUAS fazendo companhia para os nossos mesmos e solitários IGUAIS lá da segunda estrofe.
Talvez, por apresentar truques poéticos que estejam além da minha humilde percepção, só consegui enxergar na Estética de Texto, que depende, no visual, da forma como os versos são dispostos nas estrofes; uma grande bagunça do Vandré nas diferentes maneiras com que cantou a música, inclusive no mesmo festival, pois na fase classificatória, que considero oficial pelo fato da Obra vir Prima, ele cantou a letra deste jeito:

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais 
Braços dados ou não
Nas escolas nas ruas campos construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Inda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Antigas lições
De morrer pela pátria e viver sem razões

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Nas escolas nas ruas
Campos construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Dentre as regras da construção poética, há uma que exige do poeta dar uma pausa no término de cada verso, logo, se ele não dá essa pausa, entende-se que não houve mudança de verso e a contagem métrica prossegue até que anuncie o fim do verso com uma pausa, ainda que breve. 
Esse foi o motivo pelo qual registrei todas as vezes em que o refrão foi cantado na música, porque nem no refrão o Vandré conseguiu cantar da mesma maneira nessa gravação da primeira apresentação nas eliminatórias.
Há um outro recurso poético, o Cavalgamento, importado da Poesia Francesa com o nome Enjambement, que permite ao poeta, por questões de estética de texto, transferir parte do conteúdo sintático de um verso para o texto do verso anterior ou posterior, mas esse recurso exige que ele siga algumas regras, como a da breve pausa interior, que sugerem não terem sido respeitadas pela Interpretação Anarquista do Vandré.
Para entender o quadro que colocarei abaixo, aviso que as sílabas poéticas átonas estão em letras minúsculas, e as tônicas em maiúsculas e na cor vermelha, pois servem para indicar o equilíbrio ou não do Ritmo Poético, que é determinado pelas posições repetitivas das tônicas nos versos. 
Para entender o comportamento da construção poética da letra não basta só ouvir a música, ou só ler a letra. Tem que prestar atenção na entonação que o poeta dá às sílabas na recitação do poema, ou na música cantada, que nada mais é do que a própria recitação com melodia. 

1234567891011121314
CAmiNHANdo-ecanTANdo-eseGUINdo-acanÇÃO
SOmosTOdosiGUAIS
BRAçosDAdosouNÃO
NASesCOlasnasRUascamPOSconstruÇÕES
CAmiNHANdo-ecanTANdo-eseGUINdo-acanÇÃO
12345678910111213
VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOra
NÃOesPEra-aCONteCER
VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOraNÃOesPEraaCONteCER
1234567891011121314
PElosCAMposFOmeemgranDESplantaÇÕES
PElasRUasmarCHANdo
INdeCIsoscorDÕES
INdaFAzemdaFLOR
SEUmaisFORtereFRÃO
E-AcreDItamnasFLOres.venCENdo-ocaNHÃO
1234567891011121314
VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOraNÃOesPEraaCONteCER
VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOraNÃOesPEraaCONteCER
1234567891011121314
solDAdosarMAdos
aMAdosouNÃO
QUAseTOdosperDIdos
deARmasnaMÃO
NOSquarTÉISlhesenSInam
anTIgasliÇÕES
DEmorRERPElatria-eviVERsemraZÕES***
1234567891011121314
VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOraNÃOesPEraaCONteCER
VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOraNÃOesPEraaCONteCER
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NASesCOlasnasRUas
camPOSconstruÇÕES
SOmosTOdossolDAdos
arMAdosouNÃO
CAmiNHANdo-ecanTANdo-eseGUINdo-acanÇÃO
SOmosTOdosiGUAIS
BRAçosDAdosouNÃO
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OSaMOresnaMENte
asFLOresnoCHÃO
AcerTEzanaFRENte
AhisrianaMÃO
CAmiNHANdo-ecanTANdo-eseGUINdo-acanÇÃO
AprenDENdoensiNANdo
UmaNOvaliÇÃO
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VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOraNÃOesPEraaCONteCER
VEMvaMOSemBOraQUESpeRARnãoÉsaBER
quemSAbeFAZaHOraNÃOesPEraaCONteCER
1234567891011121314

Notem que coloquei uma observação em negrito no verso que diz: De morrerpela pátria e viver sem razões ***
Na letra inteira, esse verso foi o único a apresentar duas sílabas tônicas seguidas, o que fez com que ficasse Manco por conta do Ritmo Poético, o que não ocorreria se Vandré tivesse colocado nessa mesma estrofe um outro verso com tais características de tonicidade em idênticas posições, terceira e quarta sílabas, pois isso seria interpretado pela versificação latina como Efeito Espondaico, mais comum à versificação da Grécia Antiga, cujos poetas usavam trabalhar frequentemente com os Pés Espondeus, que apresentam 4 tempos, sendo o primeiro fraco, o segundo e o terceiro fortes e o quarto fraco.
Para que esse verso não ficasse manco, bastaria que ele tivesse forçado um pouco mais a pronúncia do LHES dois versos antes: Assim:
NOS/ quar/TÉISLHES/ en/SI/nam
Mas isso que demonstrei acima seria apenas uma solução fácil para salvar um verso manco, caso o poeta mais singelo estivesse preocupado em não cometer o erro, porém, em se tratando do Vandré, a probabilidade dele ter mancado o verso propositalmente é muito grande, já que o famoso “Morrer pela Pátria” sempre foi lema dos militares em guerra, e nunca o de um Poeta Mandrake escrevendo sobre eles na época em que mandavam no pedaço.
Fica muito difícil enxergar alguma proposta estética definida num poema, quando o poeta, na mesma obra, declama até os versos do repetitivo Refrão, com ou sem as pausas, de forma desordenada. Na final desse mesmo festival o Vandré cantou a música desta outra maneira:

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas nas ruas campos construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Inda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição ** aqui
De morrer pela pátria
E viver sem razão ** e aqui até a letra mudou. O que era plural virou singular.

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Nas escolas nas ruas
Campos construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Como se isso não bastasse, há uma terceira gravação em que cantou desta forma:

Caminhando e cantando (pausa)
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas nas ruas
Campos construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção

Vem vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar (pausa)
Não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
AInda fazem da flor *
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão

Vem vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar
Não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição 
De morrer pela pátria
E viver sem razão

Vem vamos embora que esperar
Não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar
Não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Nas escolas nas ruas
Campos construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Vem vamos embora que esperar
Não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Assisti ao vivo aquele festival e, embora já costumasse contar nos dedos as sílabas poéticas das letras conferindo as pausas finais dos versos, embarquei naquela onda aplaudindo o Vandré e vaiando o Chico, principalmente, por causa da última estrofe de Sabiá, que contradizia tudo o que a letra dissera anteriormente. Só muitos anos após é que vim a saber que a estrofe final de Sabiá não tinha sido escrita pelo Chico, mas sim pelo parceiro, Tom Jobim, que fez aquilo para escapar da mesma Censura que complicou a vida do Vandré.
A pegada da letra do Vandré era muito mais forte do que a do Chico, pois, numa época em que tudo girava ao redor do protesto contra a ditadura militar vigente, Vandré era atual e o Chico todo nostálgico, dando uma de Gonçalves Dias com a Canção do Exílio na letra de Sabiá, embora a construção poética dele me desse maior segurança do que aquela instabilidade toda do Vandré nas diferentes interpretações da mesma música num mesmo festival.
Se fosse para escolher qual foi a melhor das interpretações do Vandré nessa música, ficaria com a última, cuja estética dos versos mostra-se mais regular, ou menos inconstante, ao abdicar da tentativa de trabalhar com os Versos Alexandrinos (12 sílabas) e optar pela maioria em Heroicos Quebrados (versos com 6 sílabas), pois, afinal,  não há Herói que resista a essa longa ação do tempo entre 1968 e 2013.
Daria para deixar o poema com a nobreza dos versos longos, ou mesmo com o visual bonitinho e quadradinho dos curtos, como ocorre na maioria dos registros da letra nos vídeos já feitos, mas se ele preferiu cantá-lo nessas formas, não cabe a mim a pretensão de qualquer sugestão.
Quanto aos possíveis truques poéticos outros, honestamente, hoje já não me arrisco sequer a supor quais foram os recados dados de um para o outro naquelas músicas, mesmo porque no ano anterior o Chico também começou a fazer coisas deste tipo:

O homem da rua
Fica só por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa não vai não
Em casa a roda
já mudou Que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão…
(A Televisão)

Pra depois de sumir por um tempo, chegar com este papo de quem tenta reconquistar a namorada?

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos de me enganar
Como fiz enganos de me encontrar
Como fiz estradas de me perder
Fiz de tudo e nada de te esquecer
(Sabiá – Chico e Tom)

 Ver também -> http://mpbsapiens.com/caminhando-analise-de-texto/

Análise de Texto
http://www.vagalume.com.br/geraldo-vandre/pra-nao-dizer-que-nao-falei-das-flores.html


Voltar – > http://mpbsapiens.com/admiravel-gado-novo-analise-de-texto/
O ano de 1968 ficou marcado por muitos confrontos de opiniões, sendo a de
maior destaque a decretação do chamado AI-5 – Ato Institucional número 5 -
por parte do, ainda chamado, Regime Militar Provisório que nos governava, ou
melhor, tentava fazê-lo, posto que havia, por outro lado, uma Indústria do
Desgoverno fundamentada num pensamento já citado em postagens anteriores:
“Os Estados modernos possuem uma grande força criadora: a imprensa. O
papel da imprensa consiste em indicar as reclamações que se dizem
indispensáveis, dando a conhecer as reclamações do povo, criando
descontentes e sendo seu órgão. A imprensa encarna a liberdade da palavra.
Mas os Estados não souberam utilizar essa força e ela caiu em nossas mãos.
Por ela, obtivemos influência, ficando ocultos; graças a ela, ajuntamos o ouro
em nossas mãos…”
I
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção…
Refrão Repetido
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer…(2x)
II
Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão…
Refrão Repetido
III
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição:
De morrer pela pátria
E viver sem razão…
Refrão Repetido
IV
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não…
V
Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição…
Refrão Repetido – 2x
Um pouco antes do festival da canção de 1968, promovido pela globo no Rio
de Janeiro, Chico já havia escrito a peça Roda Vida, na qual procurou mostrar
a forma como a Indústria do Desgoverno agia na produção de ídolos populares.
Nunca é demais lembrar do texto que finalizava à peça:
Para nós, no Universo
Só existe paz e amores
Nós só cantamos um verso
Que fala em flores, flores, flores
Há quem nos fale de guerra
Morte, miséria terrores
Quando nos falam de terra
Plantamos flores, flores, flores
Flores, flores
Quem não gostou desta peça
Saia daqui, diga horrores
Nos divertimos à beça
E tomem flores, flores, flores
http://mpbsapiens.com/roda-viva-a-peça-parte-4/
Se, em Disparada, Vandré passara a Chico a idéia da peça Roda Viva, bem
como a do livro Fazenda Modelo; Chico, com esse texto final de Roda Viva,
praticamente devolvia a Vandré o favor anterior, mostrando estar a relação
entre os dois baseada no Diálogo Artístico, mas de cunho social semelhante.
Tratavam das mesmas preocupações sociais, com idênticas estratégias de ação,
mas com estilos musicais diferentes. Apenas isso.
O título da composição acima, Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores, que
causou toda a polêmica no festival, era apenas uma continuação do diálogo
artístico-social iniciado três anos antes em Sonho De Um Carnaval.
Nesse festival, fadado a se tornar uma repetição de 66, que registrou a um
empate entre os dois, mais uma vez mostrava cada um no estilo próprio de
contestação. Vandré externando o sentimento de forma mais próxima à do
desconforto popular, e Chico externando a posição do artista diante daquela
pressão das Forças Dominantes.
A exemplo de Disparada, Vandré trás na estrofe I os mesmos sonhos comuns,
dele e do Chico, em 1965 com Porta Estandarte e Sonho De Um Carnaval:
http://mpbsapiens.com/disparada-analise-de-texto/
http://mpbsapiens.com/porta-estandarte-o-sonho-de-vandre/
http://mpbsapiens.com/sonho-de-um-carnaval-analise-de-texto/
O Refrão já mostra um desconforto pela permanência do estado de sonho e
clama por mais Re Ação nossa, semelhante ao ocorrido na mesma Disparada:
E nos sonhos que fui sonhando
As visões se clareando
Até que um dia acordei
- Uma vez despertado de sono e sonho, reagir a que?
- Às atrocidades cometidas pelos militares nacionalistas contra os grupos que
se clamavam socialistas, ou ao texto que coloquei logo acima da letra da
composição e ele conhecia muito bem?
A estrofe III mostra bem a persistência dele na indecisão do protesto. Se por
um lado procura mostrar as nítidas diferenças sociais presentes, denunciando à
escravidão do povo em benefício das Forças Financeiras Dominantes, por outro
usa um figurativo ao confrontar as flores do povo com o canhão dos militares.
A fome em grandes plantações sempre foi óbvia, desde o tempo em que fomos
“premiados” pela dádiva do Raciocínio que nos difere.
Essa insegurança nas intenções de denúncia está latente nos versos:
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ele vê que o povo continua sonhando com o confronto Flores x Canhão, sabe
quem alimenta as ilusões e nada pode fazer. Mas continua tentando abrir os
nossos olhos, que o admiravam e aplaudiam, justicando à estrofe III.
Muito acima de qualquer ataque direto aos militares, essa estrofe III, a mais
famosa da composição, apenas colocava os militares nos mesmos indecisos
cordões em que marchávamos na estrofe II, pois embora armados, os soldados
não sabiam o que fazer com as armas, justamente pelo despreparo semelhante
ao nosso, com outros sonhos passados pelos superiores, mas também sonhos.
Com Povo e Militares adormecidos vem novamente o Refrão com o alerta:
- Acordem. Esperar não é saber. Façamos a própria hora, a própria História!
Na estrofe IV tenta novamente mostrar que estávamos todos num mesmo
barco, apesar das diferenças filosóficas alimentadas pela imprensa, mas já meio
desanimado. Um desânimo típico do poeta que escreveu, mas sente que faltou
alguma coisa, como que retraindo ao sentimento já exposto.
O Refrão é esquecido.
Na última estrofe procura resumir a tudo o que tentou dizer nas demais, onde
buscou mostrar o problema da insegurança social, mas apresentando uma
Solução muito menos sonhadora, com o seguinte recado do cidadão Vandré:
- Quem ama repara na flor que nasce, mas se o amor é ideológico confie na
própria História, sua única aliada, renascendo a cada dia com as soluções para
os problemas do dia anterior!
Aí o Refrão volta com todo o seu vigor.
Em meio àquela hostilidade toda que mostramos na final do festival de 68, havia
dois poetas que pouco necessitavam conversar para se entender. Imagino o que
a essência poética de um, ovacionado pela nossa burguesia cultural, não deva
ter sentido ao escutar do outro, vaiado pela nossa Ignorância Induzida, isto:
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos de me enganar
Como fiz enganos de te encontrar
Como fiz estradas de me perder
Fiz de tudo e nada de te esquecer.
http://mpbsapiens.com/sabia-analise-de-texto/
Era a pura tradução do conflito Poeta x Cidadão, ambos Vandré, expostos na
sua composição, só que escritos na Sabiá concorrente pelo mesmo jovem
poeta que incentivara três anos antes.
- Quantos de nós sabia que a estrofe final de Sabiá, que jogou a imagem do
Chico pra turma do Eu Te Amo Meu Brasil, fora escrita pelo Jobim para
fugir da censura? Infelizmente, daquele festival, só nos restou uma certeza que
nem pertenceu a ele, mas pulsa até hoje na História da MPB:
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a Roda Viva
E carrega a saudade pra lá…

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